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As Memórias do Livro (Geraldine Brooks)

📢 𝗡𝗢𝗧𝗔 𝗗𝗔 𝗟𝗘𝗜𝗧𝗨𝗥𝗔:⭐⭐⭐⭐⭐

“As Memórias do Livro”, de Geraldine Brooks, é um romance histórico que entrelaça histórias de diferentes épocas, todas conectadas pelo artefato central da narrativa: o Hagadá de Sarajevo, um raro manuscrito judeu que sobreviveu a séculos de conflitos e perseguições. Despretensiosamente peguei esse livro em uma troca de livros promovida pela empresa que eu trabalho e que baita surpresa eu tive, que história fantástica!

Pra começo de conversa, vamos contextualizar algumas pontos temporais antes de fato falarmos sobre o Hagadá de Sarajevo. O livro começa em 1996, logo após o fim da Guerra da Bósnia, com a chegada de Hanna Heath, uma conservadora australiana de manuscritos, em Sarajevo. Hanna é contratada para analisar e restaurar o Hagadá de Sarajevo, um manuscrito judeu de valor inestimável, conhecido por suas iluminuras esplêndidas e sua história turbulenta. 

O romance então se desenrola em uma série de flashbacks históricos, cada um explorando uma parte diferente da história do Hagadá e dos personagens que interagem com ele. Essas histórias variam desde a Inquisição Espanhola no século XV até a Segunda Guerra Mundial. Cada seção apresenta personagens distintos que, de alguma forma, protegeram, esconderam ou resgataram o Hagadá, assegurando sua sobrevivência.

Todo o trâmite temporal é muito bem separado por capítulos, facilitando que o leitor explore a história do manuscrito sem perder o fio original da história, centrado em Hanna Heath.

🟡 Hagadá de Sarajevo

É através dos olhos de Hanna, que descobrimos a história do Hagadá de Sarajevo, um livro sagrado judaico que sobreviveu a guerras e perseguições, e cada artefato encontrado nas páginas do livro nos conta uma parte da sua jornada. 

O Hagadá de Sarajevo é um manuscrito real que narra a história do êxodo dos judeus do Egito e é utilizado tradicionalmente durante o Seder de Pessach. Este manuscrito é um dos mais antigos e valiosos que se conhece, datando aproximadamente do século XIV.

Ele foi criada na Espanha, provavelmente em Barcelona ou na região da Catalunha, durante o período medieval e  apresenta uma rica ornamentação, com ilustrações coloridas (representam cenas bíblicas e rituais judaicos) e textos em hebraico. Após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, o manuscrito passou por várias mãos e regiões, incluindo possivelmente a Itália, antes de chegar a Sarajevo, na Bósnia.

No século XIX, foi adquirido pelo Museu Nacional da Bósnia e Herzegovina. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi escondido por Derviš Korkut, um curador muçulmano do museu, para protegê-lo dos nazistas. Mais tarde, durante a Guerra da Bósnia na década de 1990, o manuscrito foi novamente protegido, desta vez de possíveis danos durante o cerco de Sarajevo.

Existem várias lendas em torno do Hagadá de Sarajevo, incluindo histórias sobre sua sobrevivência milagrosa durante tempos de perseguição e guerra. Mas independente disso, o manuscrito de fato existe e tem sua autenticidade comprovada através de documentações e registros históricos desde sua entrada no Museu Nacional da Bósnia. É mais do que um artefato religioso; simbolizando a resiliência cultural e a sobrevivência das tradições judaicas através dos séculos. É um testemunho da rica herança judaica na Europa e um símbolo da coexistência multicultural em Sarajevo.

🟡 A importância da preservação cultural

A autora Geraldine Brooks usa a metáfora do livro como um fio de Ariadne, guiando-nos através do labirinto da história e mostrando como a cultura e a identidade são preservadas contra todas as probabilidades.

O livro destaca como objetos culturais, como o Hagadá de Sarajevo, são essenciais para a preservação da identidade e história de um povo. A preservação vai além do físico; envolve a proteção do significado e das histórias que esses objetos carregam. 

O melhor lugar para esconder um livro, pode ser uma biblioteca.

Vale destacar que a religião tem desempenhado um papel crucial na preservação da história e dos manuscritos ao longo dos séculos. Pense nas grandes bibliotecas e mosteiros da Idade Média como verdadeiros farois de conhecimento em tempos de escuridão e conflito. Essas instituições atuavam como guardiãs da sabedoria antiga, copiando meticulosamente textos sagrados e seculares para garantir que a sabedoria acumulada de gerações não se perdesse. 

Assim como os monges que copiavam textos na Idade Média, os escribas judeus preservaram suas escrituras em tempos de perseguição, garantindo que sua herança espiritual e cultural fosse transmitida através dos tempos. É por isso que Hanna, ao restaurar o Hagadá, não está apenas consertando um livro, mas também resgatando memórias ancestrais que correm o risco de serem esquecidas.

🟡 A interconexão das histórias humanas e mais personagens

Outro ponto interessante do livro é como vidas se conectam ao longo dos anos, como ações do passado ditam fielmente ações futuras. Na narrativa,  vidas de pessoas de diferentes épocas e lugares estão interligadas através do Hagadá. Cada dono, protetor ou restaurador do livro deixou uma marca, contribuindo para sua história rica e multifacetada.

Para nossa personagem principal, Hanna, enquanto ela descobre mais sobre a história do Hagadá, ela também enfrenta seus próprios desafios pessoais – que são traçados em seu passado familiar, impactando no seu presente. E além de Hanna, outros personagens interessantes são apresentados em “As Memórias do Livro” e suas histórias pessoais somam ainda mais na jornada do Hagadá ao longo do tempo. 

Lola, uma jovem judia que encontra refúgio com uma família muçulmana durante a Segunda Guerra Mundial e sua história é uma visão sobre como a Hagadá sobreviveu ao Holocausto.

Ser humano é muito mais importante do que ser judeu ou muçulmano, católico ou ortodoxo.

O Reverendo Judah Aryeh, um rabino veneziano do século XVII, que escreve uma nota marginal no Hagadá e representa um erudito dedicado à preservação do conhecimento e da fé, iluminando a vida intelectual e espiritual dos judeus da época.

Um grande destaque para Ruti Kaminsky, uma jovem judia que vive em Sevilha no século XV. Sua história se entrelaça com a confecção do Hagadá, em uma época marcada pela Inquisição Espanhola. Através de Ruti, o livro explora as dificuldades enfrentadas pelos judeus na Espanha medieval e a importância da Hagadá como uma forma de manter a fé e a cultura em tempos de perseguição. A personagem simboliza a resiliência e a força das mulheres na preservação das tradições e da família, mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Por fim não posso deixar de destacar Ozren Karaman, bibliotecário muçulmano de Sarajevo que protegeu o Hagadá durante a Guerra dos Bálcãs – arriscou sua vida para salvar o manuscrito. Sua amizade com Hanna se desenvolve através do trabalho conjunto na restauração do livro, e ele se torna uma figura crucial no entendimento do valor simbólico do Hagadá!

🟡 Histórias que deixam marcas

“As Memórias do Livro” é uma narrativa rica e comovente que destaca a resiliência do espírito humano e a importância da preservação cultural, um dos livros mais bonitos – e ricos historicamente, que li nos últimos tempos. 

Claro que um livro é mais do que a soma dos seus materiais. É um artefato da mente e da mão humana.

Através da lente do Hagadá de Sarajevo, Geraldine Brooks tece uma tapeçaria de histórias que celebram a diversidade, a cooperação inter-religiosa e a capacidade de superar adversidades em nome da proteção do conhecimento e da cultura. A jornada de Hanna Heath serve como um elo contemporâneo que conecta todas essas narrativas, culminando em uma reflexão profunda sobre identidade, memória e herança cultural. 

Que bela troca de livros eu fiz, viu?